CAPÍTULO 1
Introdução a Imunologia
O que é um sistema de defesa de um organismo? Por que este sistema falha e ficamos doentes? Para entender seu funcionamento em diversas doenças precisamos compreender que há um mundo microscópio que envolve células e um mundo molecular que envolve uma coordenação fina de resposta perante um agente patogênico. Aliás, um microorganismo pode se tornar patogênico quando nosso sistema de defesa falha.
O papel deste sistema é defender o organismo contra patógenos e quando o sistema falha resulta no aumento da suscetibilidade a doenças. Um exemplo de falha neste sistema é a AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome), doença emergente nos anos de 1980 que é causada pelo vírus HIV (Human Immunodeficiency Virus). Em 2019 a OMS registrou 38 milhões de pessoas infectadas e contabilizou a morte de 690 mil pessoas por doenças relacionadas ao HIV.
Por outro lado a tentativa de eliminar um patógeno como o SARS-COV-2, agente causador da COVID-19, pode levar ao que está sendo chamado nos dias de hoje de tempestade inflamatória. A COVID-19 já infectou cerca de 25 milhões de seres humanos levando à morte quase 1 milhão de pessoas em 6 meses de Pandemia. O processo inflamatório é uma tentativa de eliminar um patógeno e a exacerbação na resposta pode estar intimamente relacionada a causa de óbitos na COVID-19.
A palavra inflamação é derivada da palavra inflammatio (em Latim) que significa atear fogo. E o “fogo” ou processo inflamatório as vezes causa problemas maiores do que o necessário para resolver uma situação de injúria tecidual. O processo inflamatório pode ser desencadeado por antígenos de patógenos que entram em contato com um mecanismo inicial de defesa que é nomeado de defesa inata. A defesa inata é aquela determinada geneticamente quando nascemos e que faz a primeira barreira para tentar evitar que o organismo seja infectado ou fique doente. A defesa inata inicia uma inflamação, sendo responsável na maioria das vezes pela elevação da temperatura e dor que tentamos controlar paliativamente com o uso de analgésicos e antiinflamatórios.
A inflamação também é uma forma de sinalizar que algo está errado no organismo e pedir socorro para aumentar a linha de defesa inata ao mesmo tempo que começa estimular uma linha de defesa mais sofisticada capaz de gerar uma resposta específica e que possa auxiliar na eliminação do agente patogênico.
A importância do sistema de defesa contra infecções fica evidente quando a suscetibilidade a doenças cresce em função de uma imunossupressão como a verificada na AIDS e a defesa aumentada com a vacinação. O papel do sistema de defesa ainda pode ser evidenciado em transplantes onde há uma resposta contra proteínas do tecido introduzido no organismo recentemente ou ainda em doenças autoimunes como lúpus eritematoso. Finalmente a importância do sistema imune fica evidente em estudos para aumentar a defesa nas terapias contra tumores através da imunoterapia.
A vacinação mundial tem um papel fundamental no controle de doenças como por exemplo, difteria, pólio, rubéola (Tabela 1). Os dados de 2004 apontavam uma redução drástica de várias doenças cobertas pela vacinação. Quinze anos mais tarde, em 2019 observamos um aumento de casos de doenças que já poderiam estar controladas. Coincidentemente neste período foi observado uma resistência da população a vacinação contra doenças infecciosas.
Tabela 1. Relação do número de casos em três momentos distintos. A percentagem obtida em 2004 mostra que a vacinação em massa surte efeito benéficos.
Este quadro de resistência a vacinação talvez seja revertido pelo advento da pandemia da COVID-19 caso seja desenvolvida uma vacina eficiente no combate ao vírus SARS-COV-2. Em medicina veterinária a importância da vacinação envolve desde a saúde de animais domésticos até a produção de proteína animal.
Neste contexto, pesquisas realizadas no Reino Unido e Estados Unidos apresentaram uma taxa maior de gastos com a saúde de cães e uma taxa inferior com a saúde felina (Day, 2016). Por outro lado a vacinação contra a febre aftosa bovina foi realizada em 84 milhões de bovinos no Brasil em 2020 representando uma cobertura de 98,35% do rebanho nacional (Brasil, 2020).
Principais mecanismo da defesa inata e adquirida
O reconhecimento inicial de um patógeno pode ser realizado através de contato com a sua superfície podendo desencadear um processo inflamatório. O papel deste consiste em diferenciar moléculas específicas do microrganismo ,ou seja, moléculas com padrão diferente das células do hospedeiro para prevenir a infecção. Quando este sistema funciona, muitas vezes não é necessário nem o uso de analgésicos, antitérmicos, antiinflamatórios e muito menos de antibióticos. Estamos protegidos! A primeira barreira a invasão é o tecido epitelial, mas que geralmente pode ser superada pelo microrganismos. Caso isso aconteça, a eliminação do agente invasor pode ser feita por fagócitos, linfócitos NK (células Natural Killer) e pelo sistema complemento (Figura 1).
Figura 1. Componentes da imunidade inata.
Os fagócitos são capazes de reconhecer o microorganismo, fagocitá-los e destruí-los utilizando armas químicas como óxido nítrico (NO) e enzimas como lipases, endonucleases, proteinases. As células Natural Killer podem destruir células infectadas por agentes patogênicos intracelulares, como vírus e bactérias, por exemplo. A destruição de células infectadas é feita pela indução de apoptose mediada pelos linfócitos NKs. Por fim o sistema complemento envolve o reconhecimento do patógeno por um complexo de proteínas autocatalíticas que podem ser ativadas ao entrar em contato com o patógeno. Elas são capazes de formar poros na membrana promovendo o extravasamento do conteúdo celular seguido de morte. O contato destas proteínas geram fatores de sinalização inflamatória que podem recrutar fagócitos. Os fagocitos possuem receptores de proteínas do sistema complemento que associadas a patógeno promovem a fagocitose e posterior destruição do microrganismo como brevemente foi descrito acima.
Diante de uma nova doença, o contato com o microrganismo pode gerar um processo inflamatório para combater uma provável infecção. Esta linha de defesa inicial pode ser um sistema eficaz de defesa e o paciente resolverá rapidamente o processo infeccioso, ou pode ter sintomas leves ou ainda ser assintomático.
Simples assim! Mas não é somente isto que esta linha de defesa inicial faz. Os fagócitos são capazes de interagir com linfócitos T em um processo chamado de apresentação de antígenos protéicos que foi gerado pela digestão de proteínas do agente infeccioso em seu fagossomo. Os linfócitos T virgens são capazes de reconhecer pequenos peptídeos apresentados por um fagócito e posteriormente melhorar a resposta de destruição do microrganismo fagocitado. Células T possuem um receptor de superfície chamado TCR (receptor de célula T) que reconhecem peptídeos carregados por proteínas na superfície do fagócito. Além disso, linfócitos B virgens possuem em sua superfície proteínas chamadas de imunoglobulinas de superfície ou simplesmente BCR (receptor de célula B) que uma vez em contato com moléculas do patógeno são ativadas e passam a secretar anticorpos (Figura 2). Os anticorpos podem opsonizar os patógeno e promover a fagocitose mediada por anticorpo através do reconhecimento de um fragmento conservado (Fc) do anticorpo que é reconhecido por receptores de Fc presentes na superfície dos macrófagos.
Um fator importante que difere entre a resposta inata primária e a posterior resposta da imunidade adquirida é o tempo: enquanto a resposta inata primária a um agente infeccioso consome um tempo em horas, a resposta de linfócitos B e linfócitos T levam dias para que sejam efetivos. O número basal de fagócitos, linfócitos NK e quantidade de proteínas do sistema complemento também sofrem um aumento considerado durante a infecção mediada por citocinas inflamatórias produzidas pelo tecido afetado e pelas células de defesa.
Figura 2. Linfócitos B reconhecem diretamente antígenos de origem microbianos e passam a produzir anticorpos (imunoglobulinas). As células T dependem da interação com o fagócito (APC-célula apresentadora de antígenos profissionais) que é capaz de apresentar antígenos que são reconhecidos pelo TCR na superfície dos linfócitos T. O linfócito T efetor em uma segunda interação com um fagócito vai aumentar a capacidade de destruição de patógenos pelo fagócito.
De uma forma resumida, a resposta adquirida é composta por dois braços: a resposta humoral que consiste na ativação de linfócitos B que passam a secretar anticorpos e na resposta celular através da ativação de linfócitos T que podem auxiliar os macrófagos a destruir os patógenos fagocitados. Note que diferentes antígenos contribuem para a amplificação da resposta de defesa: o linfócito B pode secretar anticorpos contra um carboidrato ou contra um lipídio de superfície do microrganismo facilitando a fagocitose por macrófagos, por exemplo, que se conectam ao Fc através de seus receptores de Fc fazendo a fagocitose. O macrófago digere proteínas gerando peptídeos que são apresentados aos linfócitos T que por sua vez estimulam o macrófago a produzir mais enzimas e especies reativas de nitrogênio (NO) para destruir os patógenos fagocitados.
Por fim, caso o patógeno processado por uma APC seja intracelular, há a possibilidade de seleção de linfócitos T citotóxicos que tem ação parecida a dos linfócitos NK da defesa inata: induzem apoptose das células infectadas. A Figura 3 mostra um quadro resumido da resposta adquirida.
Figura 3. Componentes e funções da defesa adquirida. O mecanismo efetor dos linfócitos B é a secreção de anticorpos enquanto a resposta T é ativar macrófagos quando o patógeno for extracelular. Para patógenos intracelulares a resposta T é do tipo citotóxica, que vai induzir células infectadas a entrarem em apoptose, destruindo o patógeno.
Características da resposta adquirida
Os linfócitos B e linfócitos T são selecionados quando entram em contato com um antígeno específico e sempre responderão aquele antígeno. Isso difere da resposta inata que é capaz de responder ao contato com patógeno a um padrão pré determinado de receptores que não são específicos. Os linfócitos B e T são capazes de responder a uma maior diversidade de antígenos, graças a recombinação gênica na produção de seus receptores BCR e TCR, respectivamente. As células que reconhecem antígenos específicos geram células de memória capazes de responder rapidamente ao segundo contato com o antígeno específico. Ao entrar em contato com o antígeno específico as células de memória expandem produzindo clones capazes de defender o organismo. Estes linfócitos geram, portanto, uma resposta ótima especializada contra diferentes agentes infecciosos. Ao resolver a infecção o sistema entra em contração e homeostasia que permite respostas controladas em função da presença de antígenos. E, finalmente, a resposta adquirida não apresenta reatividade contra os próprios antígenos, prevenindo danos aos hospedeiros durante uma infecção. A reação contra antígenos próprios, isto é, padrões de moléculas produzidas por um organismo, caracteriza as doenças auto-imunes.
Um precursor linfocítico se divide e gerando células que produzem um receptor diferenciado capaz de responder a um único antígeno. O processo de seleção clonal para resposta específicas é feito com linfócitos maduros que possuem receptores diferentes para muitos antígenos antes do primeiro contato (Figura 4).
Figura 4. Seleção clonal. Um precursor linfocítico gera células que expressam diferentes receptores antígenos-específicos. Ao entrar em contato com um antígeno com alta afinidade pelo receptor a célula B passa a secretar anticorpos específicos ao antígeno do primeiro contato usado na seleção.
Após o primeiro contato são produzidos clones de linfócitos com receptores específicos que são capazes de reconhecer antígenos com alta afinidade. A somatória das ligações moleculares da interação antígeno-receptor é que caracteriza a especificidade. A baixa afinidade não desencadeia expansão clonal. Após a seleção e expansão clonal de um linfócito B ele passa a secretar anticorpos idênticos ao BCR, isto é, capazes de reconhecer o antígeno que inicialmente se ligou ao BCR. Os anticorpos secretados não possuem o domínio transmembrana do BCR.
A Figura 5 ilustra a resposta de linfócitos B para dois antígenos em momentos diferentes destacando que um segundo contato o nível plasmático de anticorpos é maior do que aquele detectado após a primeira exposição ao antígeno. Isto é possível graças a manutenção das células de memória e a produção e secreção basal de anticorpos após finalização da resposta inicial. A presença de células de memória também possibilita uma rápida expansão clonal que vai amplificar a produção e secreção de anticorpos com maior velocidade. Este aumento de linfócitos pode ser observado através da contagem de células no sangue durante uma infecção e sua retração após controle da infecção.
O mesmo acontece com as células T a partir da geração de uma população de células virgens maduras onde cada célula possui um receptor TCR específico para um antígeno. O contato com um antígeno com alta afinidade desencadeará a seleção e posterior expansão clonal. Os linfócitos T não secretam estas moléculas, mas as mantém em sua membrana. para reconhecimento de antígenos que podem ser apresentados por uma APC ou por células somáticas constitutivas do organismo.
Figura 5. Nível de anticorpos no soro após primeira e segunda exposição a antígenos específicos. Note que a resposta secundária ao antígeno A eleva substancialmente o nível de anticorpos no soro.